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domingo, 27 de fevereiro de 2011

Adeus a Luiz Gonzaga

***

Segue tua nova estrada,
Ungido sanfoneiro!
Da banda do norte já relampeja saudade.
Dos altos e baixos da tua sanfona.
Nos longe-longe deste país,
Nas muitas léguas do teu sertão do Exu
Ardemos teus irmãos neste braseiro dos que perdemos Luiz.

Guarda contigo nosso coração,
Que guardaremos nós, de um menino da margem da BR-4,
O queloide indelével, o sinal de nascença,
Dos versos da Asa Branca
Que a gente simples deste país, que tem a tua cara,
aprendeu num rádio Philco ou nas buzinas de teclado
Dos caminhões Pau-de-Arara.

Vinha a toada maviosa num crescendo
Buchuda de poeira e sertão,
Um lamento de oito baixos
A se embrenhar na plantação
Calando as gentes e os bichos,
De perguntar-se a Deus do céu
Por que tão grande era a canção.

Hino de glória e louvor ao retirante
Devoto do padim, padim Ciço
E do venerável “Deus Lua”.
O canto dos arribados,
Que já não tinham boiada,
Desistidos das charnecas
Na ressequida estiada.

Severinos retirantes,
Violeiros Aderaldos...
Cavaleiros apeados,
Barranqueiros, pajeús,
O nordeste e seu matiz,
Conteúdos genuínos
De um caminhão e um país.

E nesse Brasil em lágrimas
Que hoje verte um Orós
Pro filho de Januário,
Pelo seu Rei do Baião,
Somos quem a dor irmana,
Deserdados para sempre
Do fole de uma sanfona.

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(2 de agosto de 1989)

Augusto Timbira (Augusto Lima de Brito)


Foto: Do Certificado do Consulado Geral de Portugal, no Rio de Janeiro, expedido em 12.07.1937
***
Fevereiro, 2011

“Augusto Timbira” era como chamavam, na primeira metade do século passado, ali pela região da Onça, Boa Sorte, Constança, Paraíso e adjacências, o comerciante português, Sr. Augusto Lima de Brito. Era ele o dono da “Casa Timbiras”, situada no Bairro da Onça, no início da estrada que demanda a Boa sorte. A “casa da venda” ainda existe, com a frente íntegra. Pertence, hoje, a herdeiros de Francisco Monteiro de Resende.

O Sr. Augusto, que conheci quando criança (entre os anos de 1944 e 1950) e fazia compras para minha mãe, em sua “venda”, a “Venda do Timbira”, era um cidadão português alto, claro, já um tanto calvo por aquele tempo em que contava uns 55 anos, falava com acento lusitano bastante pronunciado, era sublinhadamente bom, amigo, prestativo, correto, atencioso e querido de todos que com ele lidavam, principalmente por seus empregados. Jamais se ouvia uma restrição ou queixa em relação à pessoa do “Sô Augusto”.

Como por aqueles tempos os Armazéns de Secos e Molhados – como a “Casa Timbiras” – tinham, nas comunidades rurais e fazendas, uma função adicional bastante similar à de uma Casa Bancária, o pressuposto da confiança no comerciante assumia importância fundamental. Era ele o comprador ou depositário de parte ou da totalidade da safra dos sitiantes, com os quais mantinha uma relação de Haver e Débito, em caderneta, possibilitando aos proprietários realizar suas compras domésticas sem uso da moeda (de módica circulação, aliás) ou mesmo remunerar seus empregados através do caixa da casa comercial.

De seu Certificado de Inscrição nº22920, do Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, expedido em 12 de julho de 1937 - cujo original me foi cedido, para cópia, pelo filho Daniel Lima de Brito - constou ter Augusto Lima de Brito 1,78m de altura, rosto oval (era normalíssimo), cabelos e olhos castanhos, nariz e boca regulares, barba raspada e cor branca; ser solteiro, comerciante, nascido em 13 de fevereiro de 1890, na freguesia de Nespereira, “concelho” de Sinfães, distrito de Viseu, na República Portuguesa - filho de Joaquim Pereira de Brito e de Olívia Joaquina Lima.

Pelo mesmo documento acima consta ainda ter chegado ao Brasil em 12 de dezembro de 1903 – com apenas 13 anos, portanto (O que leva a supor ter emigrado com seus dois irmãos mais velhos, Manoel Lima de Brito, que foi comerciante em Além Paraíba, e Joaquim Lima de Brito, estabelecido como contador no Rio de Janeiro). Lê-se também que à data de expedição do aludido Certificado, Augusto forneceu como seu endereço a Rua Paula Matos, 134, no Rio de Janeiro, e a cidade de Leopoldina, Minas. O endereço da Rua Paula Matos, no Rio, poderia perfeitamente ser o domicílio de seu irmão Joaquim.

A localidade da Onça era, nos anos 40 e 50 (e certamente antes), de muitos sitiantes com seus empregados de roça, basicamente gente pobre, de pés descalços, que vivia de uma incipiente produção agrícola e pecuária. Ainda não se falava de Carteiras de Trabalho, nada de Previdência Social, nada de Salários fixos. Roupinhas simples de panos “da Fábrica” (CFTL – Cia. De Fiação e tecidos Leopoldinense), botinas e sapatos reservados para ocasiões festivas ou religiosas, mesmo assim para poucos.

Era nesse universo de diminuta circulação de moeda que Augusto Lima de Brito tocava sua “venda”, seu pequeno retiro (de leite), sua beneficiadora de arroz e sua criação de porcos. A casa comercial, espaçosa, de bom padrão construtivo e várias portas com arcadas superiores, dispunha de telefone e rádio – únicos ao alcance de toda a região da Onça, Boa Sorte e Constança.

Do escritório do Sô Augusto, na parte anterior da loja, é que as pessoas desse meio rural, que só dispunham de estrada de terra, podiam chamar médicos para visitas domiciliares nos momentos aflitos, ou o “carro de praça” (táxi), nos casos de pronta remoção para o hospital. Os meios de transporte disponíveis eram: cavalo, charrete, carro de bois e, uma vez pelas manhãs, o caminhão que apanhava o leite para a Cooperativa Leopoldinense.

O prestativo Augusto Timbira fazia de seu telefone particular o “telefone público” da região. Com igual desprendimento cedia seus reprodutores suínos, por empréstimo, a sitiantes que não podiam manter em seus chiqueiros um animal com fim exclusivo de reprodução, quando não possuíam mais que uma ou duas fêmeas - tratadas com restos de comida da casa, algum fubá e milho.

Sabia-se que Sô Augusto teve um sócio na Casa Timbiras, o Sr. Elias Veiga, seu grande amigo, que teria vendido sua parte no negócio (antes de 1944, quando os conheci) e montado sua loja exclusiva, de secos e molhados, na cidade, na Rua João Neto, mesmo local onde ainda hoje, reside sua neta Helena Maria Ferraz Veiga, filha de Ruimar. Aliás, após o falecimento do Sr. Augusto, em outubro de 1952, seus filhos, Daniel e Abel, já órfãos de mãe, foram acolhidos, até a maioridade, na residência do Sr. Elias. Abel, nascido em 1936, contava apenas 16 anos. Daniel, o mais velho, também era menor.

Como “Caixeiro” de seu armazém teve Augusto Timbira, por muitos anos, a auxiliá-lo no balcão, o Sr. Antonio do Couto, casado com Da. Terezinha. Este casal tinha um único filho, Expedito. Um rapaz muito claro e alto. Antonio do Couto residia em boa casa, próxima à sede da confrontante, Da. Cecília Pedroso, dentro, entretanto, das terras do Timbiras. Bem próxima, também, do lado oposto ao riacho, era a casa do retireiro, Trajano.

Pouco antes do Sr. Augusto vender tudo o que tinha e acabar com a Casa Timbiras, por volta de 1950, Antonio do Couto mudou-se. Constou, na ocasião ter ido, com a família, para o Paraná. O certo é que não mais apareceu. Antes de Antonio do Couto, fora caixeiro de Augusto Timbira, na Onça, o depois conhecidíssimo comerciante de Leopoldina, “Zequita”, que passaria a possuir, já nos anos 50, um armazém na Praça da Bandeira, no mesmo imóvel em que ainda hoje residem seus descendentes.

Operava a beneficiadora de arroz da Casa Timbira, o Sr. Manoel Isidoro, cuja residência ficava um pouco afastada da sede, na subida do morro fronteiriço à propriedade herdada por Odilon Tavares Machado de seus pais, Severino Machado e Afrânia Tavares Machado, na margem superior da estrada de terra, antiga, que demandava à Constança e à Serra da Vileta.

Muitíssimo mais distante, num pequeno sítio de alqueire e meio, no alto da Serra dos Puris, divisa da propriedade dos herdeiros de Totônio Rodrigues com a Fazenda da Floresta, residia um outro empregado (ou parceiro agrícola) de Augusto Timbira, o Sr. Francisco Tigre, sempre referido como “Chico Tigre”. A esposa de Chico Tigre era a famosa “Sá Joana”, a parteira de toda a região. Suas filhas eram mulatas altas, simpáticas, muito bonitas. Também altos e elegantes eram os filhos, Manoel Tigre, Antonio Tigre e José Galdino. Descendentes de Manoel Tigre residem, hoje, próximo à Capelinha de Santo Antonio, da Onça, bem em frente ao Posto de Gasolina “Puris”.

A venda do Timbira era o ponto de encontro da comunidade rural, nos fins de semana. Como ao lado da venda funcionava a indústria de tamancos e vassouras de piaçaba, pertencente a Geraldino Campana, muitas toras de madeira eram depositadas no largo espaço fronteiriço à venda. Nessas toras os homens se sentavam para conversar e ouvir rádio. Isto mesmo: era mais um “serviço público” do Sr. Augusto à população local: bem sobre o arco superior da porta do meio da venda, pelo lado de fora, havia um alto-falante redondo, qual pequeno “tamborim” branco, que trazia para fora o som do rádio do Sô Agusto.

Augusto Lima de Brito faleceu em 04.10.1952, já viúvo e tendo vendido todos os seus bens, móveis e imóveis, deixando dois filhos de sua união com Da. Maria Luíza Eleutéria: Daniel e Abel, residentes no Rio de Janeiro. Ambos possuem, entretanto, casa em Leopoldina, onde costumam passar fins de semana. De união anterior, Da. Maria Luíza tivera também o filho José, portador de distúrbios mentais graves que o tornavam absolutamente incapaz. José faleceu ainda rapaz, internado numa clínica de repouso, segundo constou na época, ao final dos anos 40.

A historiadora Nilza Cantoni anota que na lápide do túmulo em que está sepultado Augusto Lima de Brito, no cemitério de Leopoldina, a data de nascimento que consta é 10.02.1890. Não será provável, não obstante, que a data inscrita no túmulo por terceiros, não parentes de Augusto, esteja mais correta que a do Consulado de Portugal, no Rio. Observa também, Nilza, que no mesmo túmulo encontram-se sepultados Francisco José P. Fernandes, Francisco Martins Fernandes e Julia Fernandes, falecidos entre 1889 e 2007. Os Fernandes eram portuguêses e tiveram propriedade no alto da Serra dos Puris. Vizinhos, portanto, e certamente amigos do "patrício" Augusto Timbira. São muitos os descendentes da patriarca, Da. Rosa Fernandes, ainda hoje residentes em Leopoldina.

Assim foi a pessoa (e também a “Venda”) do Augusto Timbira, que conheci entre meus 6 e 14 anos, de 1944, quando nos mudamos da Vargem Linda para a Onça, e outubro de 1952, quando, já tendo vendido todos os seus bens, o Sr. Augusto veio a falecer, vítima de câncer, residindo em uma casa do Sítio Puris, que lhe cedeu meu pai, e se situava em frente ao atual marco 771 da Rodovia BR-116, à direita de quem segue no sentido Rio/Leopoldina, cinqüenta metros antes da ponte. Morreu em casa, tendo meu pai como sua única companhia até o derradeiro instante.

Augusto Lima de Brito reuniu em vida todos os atributos de um cidadão indispensável, de um homem honrado e bom.
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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Por Obra dos Cachorros

***
Fevereiro, 2011



Se o título acima remeter meus escassos leitores àquela fotografia lírica do Carlitos sentado à soleira de uma porta na comovente companhia de um cachorrinho, me desculpem. Não é deles que falo. Também não abordo peripécias de deputados, senadores, governadores e prefeitos apanhados na carrocinha “aparatosa” da Polícia Federal. Seria bom que falasse, mas também não falo daquela página maravilhosa de Eugene O'Neill, “Testament of a Very Distinguished Dog” (Testamento de um Cão), verdadeiro mimo à sensibilidade de qualquer leitor.
Falo de cachorro em sentido lato, esses vagabundos de quatro patas que me deixam possesso toda vez que piso na “besteira” deles, como me aconteceu hoje.
Na verdade, nunca foram boas minhas relações com esse tal melhor “inimigo” do homem. Sei que tem gente que gosta, e muito, de seu cãozinho, mas, como dizem no erudito espaço rural em que nasci e me criei, “eu nunca se dei bem com esse bicho”.
Claro, não sou insensível e acho alguns até bonitinhos, principalmente quando fotografados no colo de uma jovem atriz de cinema ou seguindo o requebro artificial de uma top model. O problema é que mesmo os bonitinhos são dados a defecar, ao menos três vezes ao dia, e cocô de cachorro, sob o ponto de vista... ou melhor, sob o “ponto de olfato” das minhas narinas, fede muito além do tolerável.
Conheço coisas que fedem, neste mundo: conheço o manguezal de Ramos, no Rio, o Tietê, em São Paulo e uma fábrica de geleia de mocotó na Baixada Fluminense. Mas a tal “obra” de cachorro, exala, dissemina, uma fedentina campeoníssima.
Poderia dizer imensurável porque ainda inventaram uma unidade de medida para fetidez. Andei pensando no UOLF – sigla para Unidade Olfativa.
Poderíamos convencionar, por exemplo, para 666 gramas de excremento canino (fede como a “besta apocalíptica”), a equivalência padrão de 1000 uolfs (mil unidades olfativas), no topo da escala. No ponto diametralmente mais baixo, ou seja, no menos gravoso dos (mal) odores, teríamos o hálito de uma mulher bonita, porém fumante: 1 uolf. Sendo esta a mais tolerável de todas as afrontas ao olfato (Perdoem-me as mulheres que fumam, mas um uolfzinho não ofende ninguém e ainda funciona como alerta).
Distribuídos entre 1 e 1000 estariam os outros molestamentos às papilas olfativas como, por exemplo, 666 gramas de bacalhau: 50 uolfs; um par de tênis usado por adolescente: 200 olfs; um ovo podre: mesmo valor do par de tênis: 200 olfs; um gambá atropelado: 900 uofs, e assim por diante.
O importante é que o cocô de cachorro ocupe seu devido lugar. Pirraça antiga? Sim. Cresci num sítio próximo à cidade, onde meu pai lidava com criação e abate de suínos, fabricação de queijos, soro e manteiga – atividades propiciadoras de restos malcheirosos cuja antifragrância as narinas intermunicipais dos caninos captavam de longe.
O resultado era que um número absurdo de cães vadios vivia rondando nosso quintal. A maioria, cachorro da roça, caipiras como nós mesmos, mas apareciam também cães “gente fina”, sem carrapicho nas patas, focinho empinado, tirando onda de “morar bem”, no perímetro urbano. Chegavam principalmente à noite para filar comida no cocho dos porcos, deglutir ovos frescos nos ninhos das carijós e segurar velas, com latidos invejosos, nos  miados nupciais dos gatos.
Alarido e intromissão. Meu pai, coitado, precisando dormir depois de um áspero dia de trabalho no campo, às vezes rolava na cama ponderando entre o prejuízo e o sono. Só que ele também tinha seus “dias de cão”. Era quando saltava da cama, furioso, abria uma janela alta que dava para a manga dos porcos e queimava o filme dos penetras com os relâmpagos de sua Cartucheira-24, carregada com sal grosso no lugar do chumbo – para arder sem matar. A bicharada caçava rumo: caim!, caim!, caim! E nós, meninos, torcedores da cartucheira, íamos adivinhando, da cama, a rota dos fugitivos até que o caim, caim, caim sumisse lá longe, na noite incógnita que começava depois da porteira.
Apesar de tudo, não fui nesta vida um “sem cachorro”. Cheguei a ter dois cães. Quando menino, o Socorro, um vira-latas branquinho, saudável, esguio, tamanho médio, titular absoluto do quintal da fazenda. Área enorme, de penosa demarcação urinária, Socorro tinha que balizar marcos de xixi com extrema parcimônia par evitar pane seca. Um esguichinho mínimo aqui, outro ali.
Do Socorro tenho muita saudade. Se “obrava” fedido nem me lembro. O fazia para lá. O inesquecível, o emocionante, era vê-lo uivar para a lua cheia. Jamais saíram da minha cabeça as noites enluaradas quando Socorro, em frente à nossa varanda, de cócoras na grama qual escultura de louça muito branca, patinhas dianteiras eretas, o focinho apontado para uma lua enorme de queijo minas, uivava alongadamente qual lobo apaixonado: – Uúúúúúú! Uúúúúúú!!!
Imagem linda, meu Deus! Olha, se alguém quiser dispor de um cãozinho branco, esguio, que saiba uivar para a lua cheia, manda pra mim: o preço, a gente combina...
Meu segundo cãozinho, foi Billy the Kid, um Basset com certidão de nascimento e tudo. Ganhei-o de um amigo do TJRJ. O “acórdão” era que ele me prestasse serviços inerentes aos de sua espécie, zelando pela frente da minha casa, em Petrópolis, quando lá residi nos anos 70.
Billy the Kid era carioca da zona sul e, talvez por inadaptação à umidade serrana, latia neuroticamente para tudo e para todos (um prolixo!) e demarcou uma área bem abaixo da janela do meu quarto para consignar seus depósitos fecais. Não fiquei com ele dois meses. Felizmente, era “de raça” e tinha um sósia famoso na TV. Foi fácil passar adiante meu reclame de amortecedores Cofap.
Fique claro, entretanto, que mesmo não sendo chegado aos canídeos – segundo o Aulete, variedade doméstica do gênero canis, da qual o lobo, o chacal e a raposa são espécies selvagens – admiro muito sua longa história ao lado dos hominídeos da família sapiens sapiens. Consta que os cães foram por nós domesticados há mais de dez mil anos, como demonstram pinturas pré-históricas em grutas da Espanha, onde se veem cenas de caçada com ajuda de cães.
A convivência é, portanto, milenar. Nosso respeito pelo cão é que não faz jus ao tempo. Apesar de tê-lo como nosso “melhor amigo”, não há quem não queira ver morto um Pitbull, quando exímio intérprete dos defeitos de caráter de certos donos; nordestinos referem-se a satanás como “o cão”; indivíduos crápulas são chamados de “cachorro”; para hebreus e indianos o cão é um animal impuro; para um maometano não há insulto mais aviltante do que ser chamado de cão.
Vai ver o cachorro nos esteja proporcionando tratamento à altura, quando nos faz chapinhar seus descartes, nas praias e nas calçadas.
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(Publicada a 24.02.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Minas: Contribuintes Intimidados

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Fevereiro, 2011

Como sabemos, o IPVA - iniciais que identificam o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores - é uma daquelas muitas faturas de início de ano que todo contribuinte brasileiro, possuidor de carro, precisa quitar. Os vencimentos, em Minas, para veículos usados, vão de 17 de janeiro a 31 de março, variando de acordo com o final da placa. Quem pode pagar num prazo mais curto, ganha um descontinho pra ficar feliz.

O que anda “pegando” no IPVA de Minas Gerais, entretanto, é outra coisa. Vem ocorrendo, já há alguns anos, evasão desse imposto para outros Estados, principalmente para o Espírito Santo, onde o IPVA é muitíssimo mais barato. O governo de Minas, agora, resolveu reagir. Só que, no meu modo de ver, de forma pouco feliz.

Através das Administrações Fazendárias - AF, está mandando ofícios a todos os residentes em Minas que sejam proprietários de veículos emplacados fora do Estado, informando-os de que são devedores do IPVA (também) ao Estado de Minas e concitando-os a providenciar sua quitação ou apresentar defesa na citada divisão de Fazenda.

Na Zona da Mata Mineira e no Vale do Rio Doce, pela proximidade, a evasão se dá em direção ao Espírito Santo. A apuração de que alguns proprietários de veículos emplacados em terras capixabas “possuem residência em Minas” foi realizada, segundo consta do próprio texto dos ofícios das AF, pelo cruzamento de dados da SEF/MG, do DETRAN/MG e da Receita Federal.

Não interessa ao Governo do Estado de Minas se o “contribuinte” comprou o carro e o emplacou em outro Estado porque possui duplo domicílio. Não interessa também se já vem pagando seu IPVA, regularmente, no Estado em que o veículo está registrado. Provado que o proprietário tem seu “principal domicílio” em Minas, terá que pagar (de novo) o imposto em Minas... Prevalece o velho brocardo segundo o qual “quem paga mal, paga duas vezes”.

No meu modo de ver, o Governo de Minas, em seu esforço arrecadador, está simplesmente ignorando a letra do artigo 71 do Código Civil Brasileiro e fazendo distinção (indevida) onde a lei expressamente não distingue. Diz a Lei Federal:

“Art. 71 – Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.”

Ora, se o legislador faz alusão a "qualquer delas", referindo-se a "residências múltiplas", é evidente que ele subtrai ao intérprete qualquer espaço de conjectura quanto à natureza de uma casa em relação à outra, ou às outras. Vale dizer, não há distinção entre residência efetiva e residência eventual.

Tal é, neste momento, o drama de centenas de mineiros que possuem residências alternativas no litoral capixaba e emplacaram seus veículos por lá. Como o IPVA no Espírito Santo é 100% mais barato, ou seja, em Minas é o dobro do preço, justo será que veranistas mineiros venham preferindo comprar e emplacar seus veículos durante as férias, indicando como domicílio, naquele Estado, sua casa de veraneio.

A pergunta é:
-Estariam essas pessoas, possuidoras de imóveis residenciais que alternadamente ocupam no litoral do Espírito Santo, fazendo uso abusivo da disposição contida no art. 71, do Código Civil Brasileiro?

Honestamente, considero que não.
A inteligência do citado texto legal é de luminosidade solar - como dizem os advogados. O possuidor de mais de um imóvel residencial que os ocupa - não distinguindo, a lei, lapsos de alternância com que o faça – pode indicar como seu domicílio qualquer um deles. Inclusive, e até com boas razões, para beneficiar-se de compromissos fiscais menos onerosos. Por que não?

Se existe uma guerrinha fiscal, no campo do IPVA, entre Minas e Espírito Santo, os dois governos estaduais que busquem um modus vivendi, o entendimento possível. Só não é correto intimidar o contribuinte, mediante extorsão, para que ele abra mão de um direito que lhe é legalmente assegurado, visando resolver disputa entre dois entes federativos. Mesmo porque nenhum governante teria coragem de anunciar, antes da eleição, esse tipo de estratégia arrecadadora.
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(Publicada em 17.02.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Rod Ash, um caso de ódio

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Ano, 1969

"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!”
(Edgar Allan Poe)



No dia em que nasceu certo inquisidor anunciado como Rod Ash, toda ficção em torno da crueldade e do desamor perdeu autenticidade e resvalou para o real. Conheci-o num dia feio de tortura dissuasiva, em 1969, quando me arrostou sua presença abominável. Martirizou-me então, a contingência de ouvi-lo até o fim, sorver gota a gota o copo duplo de sua bile amaríssima.

Já as primeiras palavras de Rod deram-me a medida surpreendente do espécime maldito, da aberrante variação animal com que me deparava. Sua preleção bestial escoiceava com impiedade o íntimo da condição humana.

Eu, um jovem sob ameaça, desci ao transe da perplexidade, à insegurança mais aflita.

– Deus, Rod Ash não pode existir! Onde alguém o terá suportado antes de mim?

Compulsei, de memória, precedentes do espécime na Satânica Inquisição, no limbo dos demônios apocalípticos, revirei bestas-feras, príncipes tártaros das trevas – e, à minha frente, a variação humaniforme seguia propondo sua excepcionalidade.

Procurei no inferno de Dante, num pesadelo de Poe, pela umidade mofada dos sótãos, nos alforjes das três deusas parcas, na Transilvânia de Vlad Tepes – esquadrinhei por igual criatura, mas a réplica danada ali presente mais me assaltava os olhos e à razão, insinuando-me, a dois palmos da testa, a certeza de sua realidade infame.

– Como pôde a natureza, quase sempre sábia, dar forma humana a tão abjeta mutação?

– “Tua alma, ó vil Iscariotes, atirada a um monturo causaria nódoa” – ocorreu-me o vinagre do poeta.

Ao fim do longo martírio dei-lhe as costas furtando-me ao contágio. Rod é mensageiro e comensal das trevas, é miséria contra a qual se previna! Será bom que escape à compreensão terrena para prestígio da humanidade e do bem.  

Arquive-se, todavia, o testemunho de sua existência e o mundo seguirá mais seguro.

Alvíssaras ao dia em que a justiça triunfar, derradeira, povoando cemitérios. Haverá suspense de quinta sinfonia e os jornais anunciarão, em título de oito colunas, o trânsito de Rod Ash ao vazadouro abissal das carcaças putrefatas.

Vertido ao fel e ao estrume, Rod habitará a perversão de seu destino. Honrará para sempre o ventre canídeo que o pariu ao rubro, para que satanás jamais perdesse de vista um congregado.

Aves de mau agouro, na orfandade do extinto, crocitarão na tarde cinzenta sobre o monturo baldio apropriado à aflição de seus restos. O espírito de Rod Ash se entocará nas trevas, na escuridão contaminada de si próprio, no seio gótico do mal. Uma serpente recém-nata alcançará uma fresta no espinhaço vulcânico onde sepultar para sempre sua aversão à vida e à luz.

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(Publicada a 14.02.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Idade Presumível #

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Fevereiro, 2011

Estive pensando nos poucos problemas que, felizmente, tenho enfrentado com minha idade. Claro que devo agradecer a Deus haver-me poupado do irremediável, de algum troço maluco, sem solução. No que toca, porém, aos desgastes naturais do tempo, vem dando para manter a peteca no ar. Cuido da fuselagem (terminologia de avião, percebem?) nos prazos do manual, removo componentes com defeito e vida que segue. Cirurgias, já umas cinco.

Anos cobram menos de quem se cuida. O teólogo inglês, William Ward, disse que existem os que se queixam dos ventos, os que esperam que ele mude e os que ajustam as velas. É por aí. Hay que adaptarse, compadre! O que posso, posso; o que não devo, não posso.

Com isto e, claro, com a sorte de não descer sobre nossa cabeça a tal Espada de Dâmocles, a gente vai levando o calendário na conversa. Um tanto mais complicado é convencer disto os que nos rodeiam. As pessoas sempre esperam que a gente goste de coisas compatíveis com nossa idade documental. Nem dão bola para a sofrida construção a que chamo “minha idade presumível”.

Este mês, por exemplo, já senti sondagens sobre o que desejaria ganhar em março, como presente pelos meus setenta e três anos... Chato dizer que não quero ganhar nada. É passar recibo de velhice, de sujeito que já perdeu o fair-play, a alegria pela vida.
- Perdeu até o prazer de abrir um presente - dirão.
Bolas, nunca me amarrei em abrir presente.

Pra não decepcionar vou acabar inventando uma coisa “que me esteja fazendo muita falta”. O que seria? Dinheiro, pega mal. Na verdade, tudo que um ser humano maduro (não disse velho, tá!), na minha atual “idade presumida” pode desejar, ou ele já tem ou encontra numa loja de 1,99: DVD regravável, pen drive, resma de papel A4, caneta, lápis, marcador de texto, óculos/leitura de comprar sem receita...

Livro? Pra falar a verdade, ando tão fiel ao computador que a leitura do que chega pela rede me satisfaz plenamente. Sou leitor de monitor. Livro até que é bom pra ler deitado, mas me doem os braços e não tenho como aumentar o tamanho da fonte - baita conforto.

Pensando melhor, vou soltar uma dica que preciso camiseta regata. Todos sabem que gosto. Se alguém dedar que tenho muitas, eu digo que da cor mostarda nunca tive. É a única chance de pararem de me entupir de pijamas e chinelos.

Culpa do governo, viu! Dos burocratas do governo. Estabelecem regras e convenções declarando que a gente é velho, antes da velhice chegar, e as pessoas acreditam. Vejam que absurdo o IBGE declarar que brasileiro com 60 anos é velho! Será que eles não vêem que nossas mulheres contratam caríssimos cirurgiões plásticos para que eles apenas “confirmem” nelas suas “idades presumíveis”, ou seja, a idade que elas sentem possuir e que, por direito natural, devem ostentar?

Não pode o IBGE, com sua infundada fixação nos 60 anos, fazer tábula rasa do direito inalienável que tem a mulher brasileira de igualar, por fora, a idade que interiormente pulsa em sua alma. Onde é que estamos!

Será que o IBGE não tem sensibilidade pra ver que, igualmente, os homens sexagenários e septuagenários colocam ponte de safena e usam sildenafil no legítimo e constitucional direito de também dar contornos externos ao garotão que lhes palpita ao tórax e curte jogar vôlei de duplas com a rapaziada da praia?

Pra lá o IBGE com estatísticas furadas! Enquanto isto nós, os setentões e setentonas que eles chamam de velhos – ou seja, 10% da população brasileira - seguimos sacaneando a atuária do INSS com nossas gloriosas sobrevidas beirando a tempo de contribuição... Sem falar no ônibus de graça e no direito de furar fila em banco.
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(Publicado em 10.02.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Colégio Leopoldinense - Memórias II


Foto: (à esq. em pé): Francisco Mendonça Gama, Prof. José de Andrade, Custódio Rodrigues Junqueira, Osmar Antonio Cunha Vasconcelos, Pedro Augusto Arantes, Prof. Geraldo Bertochi, Valter Juber Evangelista da Mata, Arlen José Fontes Freire, José do Carmo Rodrigues, Adauto Ferreira, Geraldo Hélio Coelho - (abaixo): Andréa de Albuquerque Andrade, Maria Carmen Junqueira Monteiro de Barros e Maria José Jardim Junqueira (1956 - 2º Clássico)

Julho, 1985


Manifestações simpáticas à nossa conversinha ribeira, na edição número-3, deste REENCONTRO, animaram-me a picar fumo e a enrolar mais um cigarrinho.

Destaco, envaidecido, a generosidade exagerada do romancista e ex-aluno, Ivan Vasconcelos (“A Passagem”, “O Tropel”, “Um Instante Depois”, “O Toque da Graça”), que teve a delicadeza de ocupar os olhos transigentes da amizade com minhas nostalgias desenxabidas e ainda dizer que gostou.
-Bondade sua, Ivan. Prosa bissexta é brinquedo perigoso demais para mim.

Glenan Trant Campos, contemporâneo, porém jovem, corrige: Rafael, do time da Primeira-C, seria o Domingues, e não o Ienaco, como fiz constar.
-Falha nossa, Glenan. Rafael Ienaco, seu estimado sogro, na ocasião, seria do Master.

Fui falar de uma Diva do cinema e provoquei o Nilton Bastos Lima, nosso astro do vôlei, nos anos 50. Pelo telefone, Nilton relembra o mon amour! da Jeanne Moreau, mas pondera que “nunca houve uma mulher como Gilda”, donde, para ele, Rita Hayworth ser soberana.
-Certo, Nilton. Da cabeças de nossa geração romântica o vento não levou, também, a suavidade da Vivien Leigh. Mas Les Amants, película concebida para uma única cena, foi um filme dos diabos para o público da época.

Parabéns agradecidos devemos dar a José Antonio Almeida e sua equipe do Jornal. Tão bom tem saído o REENCONTRO, em composição e revisão, que mesmo o nosso poeta maior, Prof. Barcellos, não correria os riscos que sempre abominou. Mestre Barcellos ficava fulo quando a Gazeta publicava seus sonetos com erros de revisão. Houve fase na Gazeta em que os articulistas tinham que engolir até sapato com c-cedilha.

Na verdade, fazer jornal no interior é desafio para heróis. Precisamos apoiar, ajudar nosso amigo Zé Antonio a catar esses ovos. No bom sentido, claro. Do contrário um lindo ideal de congraçamento resvala para o... Buraco! (Às vezes penso muito nas mães de quem inventava nossos apelidos)

Falando da revisão, anoto o “s” dobrado com que, no artigo anterior, ela me acudiu na palavra pasarán. Roporto-me à Sala-1, o Prof. Pedro da Cruz Pereira introduzindo-nos no idioma de Cervantes:
- Em espanhol não se dobra o “s”!
(Em espanhol, de fato, não existe a consoante fricativa sonora “z”, pelo que, o “s” entre vogais é sempre lido como consoante surda, “s”)

Como nos velhos tempos, tento imitar o Pedro Cruz caprichando na pronúncia do poema Caperucita Roja, Chapeuzinho Vermelho para os íntimos:
-Caperucita no regresó, dicen que um lobo se la comió...

Conservo, daquelas aulas, um mágico fascínio pelas aventuras do Ingenioso Hidalgo, Dom Quixote, e um cacoete meio cretino (Apud, Joaquim Guedes Machado) de achar graça no acento castelhano.

Delicio-me com frase em espanhol, desde o tempo em que nos foi adotada, creio que pela Da. Judith (quanta paciência e bondade, meu Deus!), certa antologia onde li uma crônica de João Saldanha descrevendo julgamento sumário a que foram submetidos os jogadores do Botafogo, do Rio, após um amistoso na Costa Rica.

Houve um tremendo sururu em campo, pancadaria entre os pupilos de Paulo Amaral (técnico saradão do alvinegro) e os craques locais, de um time chamado Sarprisa (por supuesto que olvidaran la pelota!)

O Juiz de Direito, um cucaracha chapliniano, mais para Cantinflas do que para Spencer Tracy (remember Julgamento em Nuremberg) presidia o juri sem tirar o olho de uma galinha choca, acomodada sobre seus ovos debaixo da mesa de audiências. A cada pé que se movia a neurótica carijó piava suas ameaças...

Lá pelas tantas, el señor Juez pede tempo, acocora-se sob a mesa, ergue-se abraçado ao balaio contendo a maternal poedeira, coloca-o na soleira da janela e declara aos presentes:
- A la galina lê gusta el sol...

O ilustre ex-aluno, grande amigo, Dr. Wander José Neder, conserva essa crônica do Saldanha em sua biblioteca de advogado e historiador. É ele quem me lembra o comentário complacente do juiz ao proferir absolvição geral aos envolvidos:
- Esos de lo Sarprisa!...Não me perguntem onde está a graça.

Com o bom Pedro Cruz estudamos, no Clássico, além do Espanhol, História da América, História Geral, e, se não me engano, Prefixos Gregos.

Nada a ver com prefixos musicais, muito em voga na época. Na Rádio Leopoldina havia um solo de trompete da Cerejeira Rosa, servindo de prefixo ao programa do meio-dia:
-Nhá-nhá-nhááááááááá´....
Acertavam-se os ponteiros em Piacatuba: Meio Dia!

Problema de audiência tinha o programa Almoço Musicado, patrocínio da Creolina Pearson. Com a sutileza das rebatidas do zagueiro Barão, do RJ, nossos comunicadores diziam às famílias, supostamente à mesa do almoço, da prodigiosa eficácia do fármaco quando aplicado na... bicheira do gado.
- Hora da comida é hora de falar nisto, ô meu!

Já deu para perceber que, atento a tantas tolices extracurriculares, eu seria aluno apenas mediano. Não totalmente avesso a estudo, mas de uma tranqüilidade temerária, meio equivocada, talvez, com as noções de verso livre e verso branco, das aulas do Prof. Moura.

Nas ciências exatas, buscava socorro na casa do Geraldo Hélio Coelho, o Pastel, aluno brilhante, cadernos organizados, sempre empenhado nos estudos. Trocávamos idéias: ele no prejuízo, sempre. (Geraldo, de Valadares, é hoje professor numa Faculdade de Farmácia, de Belo Horizonte)

Recordo-me que, numa véspera de prova oral, Geraldo me passou todos os segredos da Química Orgânica. Tão íntimo fiquei da família benzeno, que o Barcelão teve que me dar nota oito... Ali na frente, de pé, na lousa!

Inicialmente incrédulo do meu desempenho ao quadro, expulsou as meninas da primeira fila, suspeitas de estarem soprando cola...
Só bem adiante, convencido de meu preparo, comentou com o outro professor da banca, o Roberto Lustosa:
- É, o banana está reagindo!...

Com isto, parei de cumprimentar o Barcellos. Pouco tempo depois, vinha ele descendo a Cotegipe no seu trote característico, com vários livros presos na axila esquerda, e cruzamos caminho em frente ao Bar do Sr. Orlando. Passei direto, olhando para o outro lado.
O Barcellos estacou caminhada, virou-se para trás, e gritou:
- Não custa dizer bom-dia, não é seu banana!...
Reatamos. Barcellos foi minha maior influência de mestre. Acho que sempre tentei imitá-lo.

Banana – que o Barcelão usava como puxão de orelha quando queria danar com algum aluno – lembra Banana´s Republics, de onde eram importados os ritmos que a gente dançava, com bafo de Rum, nos bailes do Clube Leopoldina, ao toque da Tabajara do Severino Araújo, do Quinteto Rex, do Waldir Calmon, do Conjunto do Ed Lincoln, do Steve Bernard, e, claro, da Leopoldina Orquestra.

Uma vez tivemos a Orquestra de Ruy Rey, regendo mambos e mentalizando, na virilha, aqueles golpes baixos:
-Úúúúú !

Desde o Ginásio, quando brinquei de locutor na ZYK-5, Rádio Sociedade Leopoldina, passei a gostar de música. Ouvia, na rádio, aqueles discos velhíssimos, 78 rotações, que a gente assoprava para tirar a poeira, antes de colocar no prato, e dizer:
- Os senhores ouvirão agora...
E as ondas hertzianas saíam pelos pastos à procura de ouvidos absolutos capazes de separar música de ruídos estáticos: rrrrr, rrrrr, rrrrr...

No Clube Leopoldina, sempre a Leopoldina Orquestra!" Quem viveu ouviu o trompete do Noé, do Tuíu, do Sansão; o Sax do Argemiro, do Candinho, do Castrogildo; o trombone do Horácio; a bateria do Ulisses, do Miséria, do Biscoito; o ritmo do Ponté; o baixo do Prof. Manoel Monteiro, o Manoel Reco-Reco; o teclado do Luiz Reis; o Acordeão do Ed, do Vanir; o violão do Bem-Bem; do Cocó e do Bianor.

Tinha o crooner Osmair de Paula, vidrado em Nelson Gonçalves e, depois, a vocalista Zezé, que cantava e encantava, principalmente quando o recado vinha num esquecido samba-canção que dizia: “Espere um pouco mais...”

Ora, direis, brega/piegas! Até onde sinto e empiricamente entendo, nem tanto. Apenas um indefinível desígnio de interação com os pintores e tintas que nos coloriram a alma no melhor pedaço de nossas vidas. Goethe devia estar pensando nisto ao encontrar, no conteúdo poético o conteúdo da própria vida.

No que muito particularmente me toca, um forte apelo interior de acotovelar-me à janela deste jornalzinho REENCONTRO, acenar aos meninos e meninas do meu tempo e ouvir com eles o ceguinho Stevie Wonder, na canção deliciosa dizer:
-I just called to say, I love you... (Eu liguei apenas para dizer que te amo...)
Deodato, Hudson, Paulo Guido e meu fraternal amigo Chiquinho Gama, sabem das coisas. Perguntem a eles se não é por aí.
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(Publicado no Jornal Reencontro, dos ex-alunos do Colégio Leopoldinense)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Memórias do Colégio Leopoldinense


Foto de 1957: Geraldo Hélio Coelho, Custódio Rodrigues Junqueira, Prof. Geraldo Bertochi, Cônego José Ribeiro Leitão, Prof. João Batista Alvim e José do Carmo Rodrigues.
Agachados: Andréa de Albuquerque Andrade, Francisco Mendonça Gama, Maria José Jardim Junqueira, Arlen José Fontes Freire e Maria Carmen Junqueira Monteiro de Barros (3º Clássico).

Junho, 1985
Como se 1950 fosse ontem, muito compenetrado naquela farda de brim cáqui chegava eu da minha roça para o admissão ao ginásio após rápida passagem pelo Grupo Novo, sala de Da. Climene Godinho. Fizera o primário com minha mãe, Da. Pequetita professora da Escola Rural do Bairro da Onça.

Cursei o secundário residindo na roça. Foram anos de idas e vindas no dorso do meu cavalinho Guarany (com "y”, por favor, ele gostava assim). Sete quilômetros para ir, sete para voltar. Primeira aula às seis-e-cinquenta, com o Joaquim Guedes Machado! É mole?

O salto da cama às quatro da matina, o banho frio, o café e a sela bem afivelada para o galope de uma hora até Leopoldina.
O Guarany dormia preocupado!

Na cidade, amarrava meu semovente pequira em frente ao armazém do Joaquim de Oliveira, na Rua das Flores, esquina com João Neto. Dali ao colégio, pisava torto o meu sapato preto, marca Tank, meia-sola de pneu Dunlop. Seu Badaró, o ferrador de animais com ponto fixo naquela esquina, nem sempre impedia que gazeteiros contumazes cavalgassem o extenuado castanho durante o sagrado horário escolar em que hauríamos de nossos mestres preciosos ensinamentos e conceitos, nem sempre bem assimilados, como este que o Prof. Amil Adum gravou para sempre no meu cérebro: The tulip is a beautiful flower, but the rose is more beautiful.

A conversa, porém, estava nos filantes clandestinos do meu cavalo. Sei o nome dos sacanas, mas vão ficar no anonimato por desaforo e para homenagem póstuma ao meu maltratado Rocinante, do qual eles tanto abusaram.

A bem da verdade, outro fato me persuadia a deixar o cavalo mais longe e chegar a pé ao Colégio: o Guarany era terrivelmente flatulento e me matava de vergonha toda vez que, arqueando o rabo, dava de amarelar os cascos na presença de garotas. Aquele tiroteio! Um vexame!

A sala do Curso de Admissão (sala-13) ficava em frente ao gabinete de história natural. Uma turma imensa, na qual só dois colegas me eram conhecidos: o primo Dilton Godinho Rodrigues (hoje presidente da Petrocoque - a estatal do grafite), e José Godinho Neto (no Banco do Brasil – Ag. Copacabana).

Curioso que, daquela velha classe, o patronímico incomum me congelou na memória o nome do José Sinfrônio... Ele, entretanto, sumiu no mundo. Não cursou a primeira série com a gente e jamais se falou nele após 1950.

Na mesma prateleira de nomes singulares conservo o do Estigarríbia, o Tiguinha, e o apelido do Bochano (José Alexandre Velasco do Oliveira). Carrano, nosso boníssimo José Hernane, nos deixou ainda jovem. Faleceu pouco tempo depois do ginásio, o Carrano.

No curso admissão pontificava o Tenente Enock, velho professor de contabilidade. Era bravo que só ele! Pela vivência militar, a custo devia suportar tanta adolescência em ebulição. Às vezes, também paternal, Tenente Enock chamava os trambelhos às falas erguendo na ponta do dedo a ementa de sua formação castrense:
- Um brasileiro não ri! Tenha compostura, seu moço! Eu não sei se estou falando com um futuro presidente da república!


E o Enockinho, hem? Há tempos o vi desejando um táxi, na calçada da Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro, em frente à Biblioteca Nacional. Era advogado da Procuradoria Municipal do Rio. Fomos colegas na Primeira-C. Enock, aluno aplicado, sempre sentado na carteira da frente, aquela de mesa baixinha, incômoda. O Prof. Machado passava a mão suja de giz na cabeça dele, num afago:
- Ôoo Inuquinho!!!

Aliás, recebi muito mal minha classificação para a Primeira Série-C. Considerei uma captis diminutio. Aborrecia-me não ter ido para a Primeira-A. O motivo nem eu sabia. Talvez o charme da precedência alfabética do "a", ou algum instinto benigno dentro de mim almejasse mais proximidade com as garotas da Primeira-A. Na “B” e na “C” éramos todos homens.

Ah, as meninas românticas dos anos dourados! Seriam perfeitas não fossem o laquê e a Miss Suéter!...

Com o tempo, entretanto, assimilei a Primeira-C.
Tínhamos um time de futebol graças ao Kleber Lacerda Botelho que, um pouco mais velho, liderava o recreio. Muito engraçado e comunicativo, Kléber dispunha da energia saltitante de um passarinho silvestre. Contava piadas zombando de si mesmo, era muito engraçado.

Kléber tinha uma perna bem mais curta que a outra, mancava, e, como garoto que amava os Beatles e os Rollings Stones, seguramente não era belo. Ligeiramente estrábico, canhoto, adquiriu uma cicatriz no supercílio em demonstração de habilidade ciclística para a namorada, soltando a mão do guidão, em frente ao açougue do Bechepeche, na esquina de Rua Tiradentes com a Praça do Rosário. A roda dianteira resvalou numa costela de boi roída pelos cachorros, abandonada na rua. Kléber foi de testa ao meio-fio...

No nosso time ele era técnico, goleiro e comentarista esportivo. Armou a escalação rimada em "é" para anunciá-la no tom apocalíptico dos locutores do rádio, com uma raiz de pau à mão, valendo como microfone:
-Estamos entrando em campo com, Kleber, Dirto e Mané; Isaac, Pompílio e Faé; Saratoga, Warto, Warmir, Feliciano e Izé!


Dilton, era o Dilton Godinho Neto; Mané, o Manoel “Jumento", zagueiro que entrava duro nas divididas; Isaac, o Isaac Hadad Berbari; Pompilio, era o Pompílio Bastos Lima; Faé, o Rafael Domingues; Saratoga, era este escriba, com seu primeiro apelido no Ginásio, inspirado em vagabundérrima marca de cigarros - na segunda série promoveram-me a Buraco, o apelido que ficou; Walter, era o Walter Juber Evangelista da Mata, de Piacatuba; Walmir, era o Finamore, de Cisneiros; Feliciano, o Barbosa Pires, de Piacatuba; e Izé, era o José Godinho Neto.

Essa poderosa esquadra na qual eu mal pegava reserva (o anúncio era galhofa), certo dia, em 1951, foi enfrentar o time do Seminário em seu próprio campo, na convicção de que padre não joga nada...

No time deles o ponta-direita atuava de batina (um jovem secular), mas tinha velocidade (regular) de capeta e nos penitenciava com cruzamentos amaldiçoados, pelo alto, endereçados a testa de um centroavante gigantesco e avassalador chamado Joaquim de Mello. Da cabeça do Joaquim, a bola ia, religiosamente, para a nossa rede. (Joaquim fez ginásio no seminário, depois direito e carreira no Banco do Brasil, no Rio de Janeiro). O meia-esquerda deles era o Zéca Fajardo (José Fajardo de Melo Campos), na época também um iniciado. Outro craque. Não achamos a bola.

A memória me poupa o placar final daquela fatídica pugna ludopédica. (Obrigado, Prof. Batista, aceite meu carinho na moeda de tua própria simpatia conosco:
- Magister pulcher et magnus est!)

Nosso professor de Latim brincava com os alunos pronunciando esta frase, em suposto benefício próprio, que significaria:
- O professor é belo e grande...

Quanto ao jogo, lembro-me apenas que o primeiro tempo já terminara em oito a zero para os seminaristas.
Contundido, logo de saída, Kléber entregou a camisa de goleiro para o Regra-3, Robertinho (Roberto Ladeira Fontes), baixinho de mal alcançar a cintura do impiedoso centro-avante Joaquim, que passou 90 minutos no sacerdotal mister de golpear para nossa rede todo objeto esférico que transitasse sobre a área. Até asteroide vadio.
Jamais na história do dito esporte bretão um goleiro terá pago tão caro sua - digamos - deficiência nas bolas altas. Foi um massacre. Procurou-se evitar a palavra revanche.

Coisas da Primeira-C. Dali em diante a gente foi crescendo e curtindo as gamações, os footings, os bailes das semanas de Exposição, os mestres, os amigos, o timaço da Liga, o TG-98, a Leopoldina Orquestra, o Baralho da Vida * ...

Diria que foi tudo muito lindo. Mas que parece bolero, parece.
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(Jose do Carmo Rodrigues - Turma de 1957 - Publicado em 1985 no Jornal Reencontro, dos ex-alunos do Colégio Leopoldinense)

(*  “Baralho da Vida” é uma famosa canção composta por Ulisses de Oliveira, ex-baterista da Leopoldina Orquestra, gravada por Dora Lopes, em 1953. Foi sucesso nacional e teve muitas outras gravações, inclusive de Cauby Peixoto e Ângela Maria. Conheci Ulisses entre 1951/1953, como (também) pensionista na pensão do Sr. Nem Fajardo, na Rua Tiradentes, onde é hoje a Padaria Santa Terezinha. Soube que faleceu, há alguns anos, em Juiz de Fora.)

José Flávio Moraes Ribeiro (Bisuca)



***
Dezembro, 1995

Bisuca, como era preferencialmente chamado pelos amigos, nasceu em Abaíba, distrito de Leopoldina, no ano de 1939, vindo fazer o secundário no Colégio Leopoldinense, a partir do início da década de 1950. Foi o mais jovem dos três filhos que tiveram, o Sr. Francisco Edgard Pinto Ribeiro e sua esposa, Da. Heloísa Moraes Ribeiro.

Magrinho e alto, José Flávio se destacava entre os alunos do Colégio por sua grande simpatia e comunicabilidade, tornando-se companhia a todos bem-vinda. Característica esta que era comum, aliás, também a seus dois irmãos, contemporâneos de ginásio, Mary e Francisco Edgard.

Aluno responsável e aplicado, destacava-se ainda o Bizuca por sua habilidade ímpar no “Jogo de Sinuca”, que era o principal “hobby” da rapaziada do Colégio Leopoldinense, reunida aos sábados e domingos no Bar do Sr. Orlando Leite, na Rua Barão de Cotegipe, em frente ao Cine Theatro Alencar. Poucos se comparavam a ele em técnica e precisão no taco.

Ao término do secundário, seguiu para Rio de Janeiro, onde concluiu Ciências Contábeis e ingressou, por concurso, na TELERJ - Cia. Telefônica do Rio de Janeiro, vindo nessa empresa a aposentar-se nos anos 90.

Faleceu aos 56 anos, vítima de ataque cardíaco ocorrido quando visitava a cidade de Ouro Preto, MG, no domingo, dia 17.12.95. Foi sepultado em Leopoldina, naquela mesma data, às 17 horas. Ultimamente vinha, de fato, apresentando problemas cardíacos bastante sérios. Deixou esposa, Grace Aragon Ribeiro e os filhos Flávio e Alice, residentes em Niterói, RJ.

Aposentara-se recentemente da TELERJ, onde fez carreira e ocupou cargos destacados na área Técnica. Residia em Niterói, desde que se casou, porém, muito ligado a Leopoldina, aqui passava dias seguidos reencontrando amigos e cuidando de suas duas propriedades rurais nas proximidades de Vista Alegre.

Bizuca era pura jovialidade. Nem a consciência da doença séria que o passou a afligir, nos últimos tempos, parecia diminuir a felicidade e a disposição com que encarava a vida. Deixou entre os amigos uma frustração muito nítida de partida prematura e injusta.
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(Publicado no Jornal Reencontro, dos ex-alunos do Colégio Leopoldinense)

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

José Geraldo Machado Rodrigues


***
1987

O advogado José Geraldo Machado Rodrigues (Ladinho), nasceu em Leopoldina, Minas, mais especificamente na Escola da Vargem Linda, no dia 15 de setembro de 1940, localidade onde sua mãe era professora pública. Faleceu no interior do Estado do Mato Grosso no dia 6 de maio de 1987.

Era o terceiro filho dos onze que tiveram seus pais, João Rodrigues e de Maria Machado Rodrigues.

Ladinho, que iniciou seus estudos em Leopoldina, no Grupo Escolar Botelho Reis e, depois, no Colégio Leopoldinense, bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia, MG, e veio a se transformar numa das muitas vítimas silenciosas, mas heróicas, das questões fundiárias deste País.

Advogado militante, José Geraldo foi brutalmente assassinado, numa primitiva região de Centro Oeste brasileiro, por “ex-adversos”, isto é, pessoas com interesses processuais contrários aos de clientes seus, em procedimentos judiciais, os mais diversos, principalmente envolvendo domínio e posse de terras litigiosas.

Amor ao direito, inteligência e trabalho árduo foram as marcas mais assinaladas desse corajoso leopoldinense. Dentro do direito, uma paixão irrefreável pela defesa dos mais fracos, dos despossuídos, dos injustiçados. Neste mister fez-se presente e intrépido em regiões longínquas e sem lei do nosso incendiado meio rural, na metade do século XX.

Emprestava arrojo e competência nas questões que conduzia, o que lhe rendia grande conceito e boas amizades, entretanto, na outra ponta, necessariamente angariava descontentamentos em indivíduos incivilizados, incapazes de compreender o contraditório forense e o alcance técnico das decisões judiciais.

Tombou, no exercício de um sacerdócio profissional, no cumprimento do dever inalienável do Advogado que se entrega ao Direito, que não transige com a corrupções e com o erro, que nasceu para arrostar sem hesitação às próprias iniquidades humanas.

Arrojado profissional do direito, não hesitava em anunciar o império da Lei mesmo onde o primitivismo poderia responder com o fogo.

Viveu e morreu na luta pela Justiça, herói extraordinário de um Brasil ainda selvático nos limites de suas fronteiras agrícolas.

O advogado e delegado, José Geraldo Machado Rodrigues, foi um profissional do Direito na mais intransigente acepção do conceito. Um bravo, um idealista, para quem os perigos e as dificuldades simplesmente não contavam.

Com sua morte prematura, Ladinho deixou esposa (Maria de Lourdes Souza Rodrigues) e quatro filhas, Raquel (Médica Dermatologista), Reila (Engenheira Eletrônica), Rosana (Médica Radiologista) e Rejane (Arquiteta), todas então residentes no Rio de Janeiro.
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(Publicado no Jornal Reencontro, dos ex-alunos do Colégio Leopoldinense )

Marmelada Colombo #

***
Fevereiro, 2011


Cansado e com aquele calorão que fazia, livrei-me da camisa, liguei o condicionador de ar e me estiquei ao chão na posição de pensar em nada. Nadinha! Vácuo de lâmpada fosca no cérebro. Zero grilos, angústias zeradas. Na língua apenas o adocicado sutil de uma quimérica “Marmelada Colombo”.


Isto mesmo, volta e meia me recorre nostalgia da velha Marmelada Colombo, retentiva anacrônica de minha infância na roça. Minha mãe à mesa do almoço, o abridor de latas entre os dedos, abrindo cuidadosamente a tampa da latinha retangular. Nós, meninos, pratos de doce às mãos, ávidos daquela divina geleia de marmelo.

Alguém aí na plateia se lembra da Marmelada Colombo? Vinha numa embalagem metálica, como um delgado tijolinho verde. Lembro-me do losango branco na lateral da lata e a marca “colombo”, da celebre confeitaria, em alto relevo pelo meio da tampa. O doce, de cor âmbar, requintada delícia, desmanchava-se na boca e a gente podia trincar nos dentes uns grãozinhos crocantes da fruta não totalmente moída.

Sempre que perguntávamos à mamãe onde estava papai e ouvíamos que fora à cidade fazer compras, boiava no ar a expectativa de que nossa Marmelada pudesse estar a caminho. Mamãe costumava servi-la com requeijão feito em casa, por minha ex-babá, Olguinha Cisneiros. Um beijo interestelar, Olguinha no céu!

Passo por estas lembranças de menino rural, mas quero chegar a um episódio que vem mais à frente, quando já contava uns quarenta anos de idade. A profissão de advogado me levara a privar com pessoas na diretoria de um importante grupo de empresas cariocas do ramo da indústria e comércio de roupas. Um dos diretores se chamava Carlos Gomes, homem extraordinariamente afável, excelente papo, tanto que alguma idade a mais, pelo lado dele, não impediu que ficássemos amigos.

Certo dia almoçávamos num restaurante do centro da cidade e minha escolha, para sobremesa, foi marmelada. Ele gostou da ideia, também pediu e – como vinha ao caso – tomei a palavra sobre minha fixação de garoto na lendária Marmelada Colombo. Claro, descrevi pormenores impressos na indefectível latinha verde e o cuidado com que minha mãe removia a tampa, sob vigilante expectativa dos filhos à sua roda, ansiosos da maravilha a ser logo degustada...
Carlos, num gesto imprevisto, estendeu-me a mão sobre a mesa, para que eu a apertasse, e declarou com naturalidade:
-Eu fazia, para vocês, aquele doce!
Como?
-Isto que você ouviu. Eu fazia a Marmelada Colombo. Fui diretor da fábrica que, depois, veio a ser transferida para uma rede de supermercados... A qualidade passou a não ser a mesma.

Não me contive. Levantei-me e apliquei um vigoroso abraço no amigo – dali em diante declarado, expressamente, “amigo de infância”! Não sei quantas outras lembranças ainda relacionei ao produto, sempre instando conformidade ao meu versado herói. Ouvi dele sobre cada passo da fabricação: da aquisição da fruta à logística que permitia que a embalagem contendo a suave preciosidade chegasse à nossa casa modesta, lá nas roças de Minas.

Enfim, passei a conhecer cientificamente, depois de grande, aquilo que tanto me encantou nas vivências de menino. Quanto ao Carlos, só podia rir de ver-se promovido à divindade intangível que, nos meus tempos de criança, fabricava a Marmelada Colombo!

Vencida a emoção, passamos à sobremesa pedida. Marmelada, não disse? Só não era Colombo, claro. Esta já não existia.

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(Publicado em 03.02.2011 em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/mariahelena/e no LEOPOLDINENSE Online)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

YARA

***
(Ao colega de Pré-Vestibular e de Calabouço, Joaquim de Melo)


Quis esta sorte, caro poeta amigo
trazer-me aos olhos a mesma paisagem
que a mesma sorte pra seus olhos trouxe,
visão, qual seja, da mesma miragem.

***
Levou-me o vento desta nossa sina,
àquele sítio, àquela ribeira,
onde Mãe d'Água, que você não viu,
por mim foi vista pela vez primeira.

***
E como é bela, e que pureza encerra,
quem você cuida ser a mãe de todos!
Pois saiba, amigo, que é renúncia à terra:

***
A loira d'água, nossa igual vertigem,
Naquela gruta, foge do pecado,
chama-se Yara - e permanece virgem.

***
José do Carmo, 1960